a bandeira do coletivo

Foto: Daniel Bilac - 2007

Camilo, além de ser um pesquisador de movimentos coletivos de publicação de textos literários e de poesia, você também já participou de muitos grupos que realizaram publicações de poesia e de literatura. Conte um pouco como foram as experiências dentro dessas iniciativas.

Bom, o grupo Dazibao foi criado no início da década de 1980, em Divinópolis, e foi uma iniciativa de alguns amigos, porque a união surge de uma relação afetiva que você tem com as pessoas. Esse é o primeiro ponto que leva você a reunir pra poder trabalhar, pra poder produzir alguma coisa.

Se identificou, então, esse agrupamento de inicialmente 4 pessoas que escreviam versos – cada um com alguns textos guardados e todos queriam publicar. O objetivo foi, inicialmente, reunir e mostrar. O grupo se reuniu pra cada um poder ler o texto do outro, o que também é uma questão interessante. Por essas relações afetivas, você tem algumas pessoas que escrevem e elas se reúnem, antes de mais nada, pra cada um ler o trabalho do outro. Eu acho que isso é importante para construir o processo de criação de cada um.

Muita gente começa a escrever e já quer mandar seu texto pra uma editora estabelecida ou pra um poeta ou escritor consagrado, pra ver o quê que ele acha, se tem qualidade, se não tem... quer dizer, há muitas pessoas que já querem ir direto pra isso. Eu acho que pode ser um caminho, mas esse exercício dentro de um grupo é fundamental e contribui pra que cada um possa aprimorar mais.

A partir daí, com essa experiência lá de Divinópolis, isso foi ficando. Mesmo entrando na faculdade, cursando, começando a trabalhar, o projeto Dazibao ficou na cabeça, mesmo com várias interrupções. Quer dizer, a vida vai te atropelando e você deixa de fazer alguma coisa. Essas produções editoriais (jornais, livros, etc) em alguns momentos vão ficando um pouco em segundo plano, mas nunca esquecidas, né? Nunca esquecidas. E, em alguns momentos, afloram de novo.

O Dezfaces acabou mesclando o trabalho autoral e o de pesquisa, porque acabou montando um quadro do que é a poesia em Belo Horizonte hoje. Que paralelo você pode fazer entre o Dezfaces e a coleção Poesia Orbital?

Tanto o Poesia Orbital como o Dezfaces foram projetos em que a idéia era focalizar a poesia contemporânea de Belo Horizonte. A Poesia Orbital, com 62 livros, foi o flash daquele momento, porque a gente conseguiu levantar o que tava sendo produzido em Belo Horizonte. A idéia, inclusive, era fazer 100 livros (pelo centenário da cidade), mas com os atropelos e as desistências, chegamos em 62 livros.

A coordenação da coleção Poesia Orbital contou com a presença de alguns grupos editoriais da cidade (Cemflores, Dazibao, Fahrenheit e Razão de Dois) que já vinham trabalhando com publicações coletivas de textos literários em diferentes formatos gráficos. Na verdade, várias órbitas poéticas transitaram ou circularam pela coleção, traduzindo a um só tempo a autonomia de cada autor, de cada grupo editorial, de cada tendência, e, também, a possibilidade do encontro dessas diferenças. O projeto Dezfaces contou com a presença de muitos poetas-editores que colaboraram com o Poesia Orbital. Além disso, retoma também a questão da autonomia editorial. Se na coleção Poesia Orbital, cada poeta respondia pelo seu livro, pelos seus versos, o Dezfaces espelha também um pouco isso. Cada núcleo editorial do Dezfaces teve autonomia para produzir o seu jornal, a sua edição. No entanto, no conjunto das 10 edições, há um nexo: a realização de um passeio por várias vozes da poética belo-horizontina atual.

No livro Itinerários, você faz um resgate histórico das publicações coletivas de Divinópolis, da década de 1960 até 2000. Já no Dezfaces 6, você faz um levantamento de iniciativas editoriais mais ou menos semelhantes, produzidas em Belo Horizonte – algumas da década de 90 e outras ainda em atividade. Que elementos você vê em comum entre essas ações?

A gente percebe que essa idéia da reunião, que eu chamei no livro de “poética do coletivo”, essa existência de grupos, de publicação de antologias, de jornais, etc, virou uma tradição, que não foi inventada nem em 2006 e 2007, nem na década de 1960. No século XX, encontramos nas vanguardas das primeiras décadas essa idéia da reunião para a produção de um manifesto, de uma proposta coletiva.

O elemento comum é a idéia de que todo mundo que reuniu produz versos ou textos literários, enfim, o que une é a literatura. Quer dizer, cada um tem um trabalho pra mostrar, a princípio um trabalho para mostrar para o outro. A partir daí é que se cria essa idéia: vamos editar conjuntamente? Vamos fazer uma publicação coletiva desses textos? Então, algo que aproxima é que são poetas-editores (são poetas que editam, então eu chamo de poetas-editores). Esse é o princípio, acho que a união vem daí.

Bom, a partir daí você sente que chega um momento em que as pessoas que fazem parte desse movimento querem ampliar os interlocutores. Uma forma de ampliar a interlocução é trazer outras pessoas para serem publicadas no seu respectivo jornal ou antologia. Essas pessoas que vão chegando acabam criando um vínculo: são alguns colaboradores que acabam se incorporando e dando o perfil e a cara da publicação. Acho que isso tá presente nessa pesquisa do Jornal Agora, do Diadorim, do próprio Dazibao, d’A Parada, das Mininas, do Mulheres Emergentes, do Cemflores, do Fahrenheit, de vários grupos aí que tiveram publicações coletivas. Então esse é um ponto interessante, os colabores acabam fazendo o quê?, assumindo a bandeira do coletivo.

Ah, um outro detalhe também é que, com exceção de um ou outro, todos os participantes, pelo menos o núcleo que cria a publicação, acabam, digamos assim, abandonando momentaneamente algum projeto de publicação individual. Não quer dizer que as pessoas não possam publicar os seus livros independentemente do grupo, mas o agrupamento acaba sendo muito mais estimulante para a continuidade das publicações futuras de cada um.

Um ponto que eu também acho interessante é que, embora a gente chame de poética do coletivo, o quê que é o coletivo aí nessa questão? O coletivo aparece na linha editorial da publicação, ele pode estar presente no projeto gráfico... Agora, no conteúdo das obras, quer dizer, o que vai ser publicado, nisso aí há uma diversidade.

Nos anos 60, no jornal/movimento Agora, de Divinópolis, você tinha um leque de poetas, de escritores, e cada um lá com seu trabalho. O trabalho, a linguagem e a pesquisa que cada um desenvolvia era um processo individualizado. Desde os anos 60 até hoje, a gente percebe isso, o que não é nenhum fator de depreciação.

No seu estudo sobre o simbolismo, o poeta Paul Valéry esclarece que a unidade não se encontra em uma concordância estética, comportando tendências variadas e divergentes. Essa observação de Valéry se aplica também quando examinamos o itinerário de várias publicações literárias coletivas. A ética do coletivo reside no prazer dos grupos de editores e poetas em se reunirem em torno da poesia, buscando definir alguns parâmetros de publicação e criando estratégias para a circulação das mesmas. Afinidades estéticas vão se tecendo entre os participantes e colaboradores, mas elas não constituem balizas definidoras das publicações.

Isso não quer dizer que nós não temos hoje publicações de revistas coletivas e outras edições que têm propostas editoriais definidas e que são, a priori, propostas que definem o quê e quem vai ser publicado. Não podemos generalizar o processo. Nós estamos trabalhando dentro da observância de alguns grupos de Divinópolis e daqui de Belo Horizonte. Em todos os casos, escolhas são feitas.

Qual foi a motivação que o levou a fazer desses grupos editoriais e desses coletivos objetos de estudo?

Eu me interesso por essas publicações, eu procuro sempre ir guardando esse material. Mas acho que o que me levou a escrever o Itinerários foi essa experiência pessoal de procurar entender o porquê que a gente vem trazendo essas coisas, que sentido essas coisas têm na vida, essa idéia de ficar reunindo, discutindo texto, publicando coletivamente. Que sentido isso tem? Então, partiu mais dessa experiência com o Dazibao, de procurar entender como que esse processo funcionava. Então, por exemplo, no caso d’A Parada, quando vocês chegaram lá no CEFET, com a proposta do jornal, a gente já sabia do que se tratava, entendeu? E aí, engraçado... por que isso continua? Por que as pessoas continuam ainda? Qual é o fundamento disso aí? Que sentido que isso tem pras pessoas? Deve ter algum sentido, né?

E você tem encontrado essas respostas?

Olha, eu acho que não. Eu acho que, na verdade, em cada projeto que você faz, de que você participa, alguma coisa vai ficando mais clara, mas que ainda não dá pra... Com o tempo, você vai percebendo que essas são algumas atitudes importantes, que têm alguns fundamentos políticos no processo todo, que na verdade é importante a circulação dos textos, é importante a ampliação da leitura por um público. Às vezes, determinadas publicações caem na mão de algumas pessoas que nunca leram um texto nesse formato, que não conheciam.

Então, eu acho que existe uma causa aí, que eu não sei se dá pra dizer mais uma causa poética, uma causa da poesia. Às vezes, a gente recebe algumas correspondências... A gente recebeu um e-mail de um menino de Mateus Leme dizendo que tinha gostado do Dezfaces. Ele trabalha na área de cultura e achou interessante, e aquilo foi importante pra ele. Quer dizer, eu não sei qual a importância que ele deu ao fato, mas aquilo provocou alguma inquietação nele, entendeu? Aquilo o levou a pensar alguma outra coisa, o que é, eu não sei. De repente, daqui a pouco, ele está fazendo seu jornal lá. Então, são algumas coisas que eu acho que são gratificantes pelo processo todo.


Você acha que os coletivos poéticos têm explorado, de maneira geral, toda a sua potencialidade? E por quê?

Primeiro, é preciso identificar quais são as potencialidades desses coletivos. É o quê? É uma capacidade de quê? De intervenção? Você criar um projeto gráfico, botar debaixo do braço, buscar uma forma de viabilizar a publicação, fazer os textos circularem, chegarem até um maior número de pessoas, propor uma discussão da poética, propor uma discussão da poesia, trazer algumas questões pro debate da poesia, romper com alguns obstáculos econômicos e culturais do mercado editorial... Se a gente considerar que essas são as potencialidades das publicações coletivas, ou nessa direção, eu acho que muitas delas têm avançado no processo.

Agora, a gente tem observado que o que marca muito essas publicações é a descontinuidade. Isso tanto na minha experiência com o Dazibao como em outras publicações. Dizem que uma revista ou um jornal de poesia não passa do terceiro ou do quarto número, né? Porém, alguns projetos têm demonstrado que isso não ocorre. O próprio Dezfaces foram 10 jornais. Então, eu acho que isso é um avanço, um ganho. Mostra que essas publicações têm fôlego, embora, é claro, muitas vezes possam ser interrompidas nos primeiros números. Quer dizer, as coisas não são tão prontinhas assim. Os projetos são interrompidos, são retomados; enfim, todo esse processo.

Sobre o alcance, a gente observa que as publicações atingem leitores, mas eu não sei qual seria o método pra fazer a medição do alcance delas. A gente tem a impressão de que circula apenas num meio restrito; depois, às vezes, chegam notícias de alguns lugares... aí, poxa!, o jornal tá circulando, mas a gente não tem como medir isso. A tiragem é distribuída, mas a gente não sabe o alcance disso aí. Algumas vezes, a gente percebe que tem uma distribuição precária, então acho que a forma de distribuição é algo a ser pensado.

Pensar as potencialidades em termos do que está sendo publicado, quer dizer, a potencialidade da palavra, ou considerar a questão da linguagem... Eu acho que muitas dessas publicações trazem um vigor para a palavra poética. Essa idéia de abertura pra diversas vozes poéticas convivendo dentro de um universo, dentro de uma publicação, também pode ser um elemento dessa potencialidade toda, mas eu não sei até onde isso vai.